Por Jose Nestor Cardoso, Oceanólogo, Instrutor de Mergulho PADI, IANTD, CMAS, Mergulhador Cientifico BRE001
Não foi nem a primeira nem a última vez.
Caribe, quem não fala de seus mergulhos ou da expectativa de seus próximos mergulhos naquelas águas maravilhosas?
Acostumado a mergulhar em Rio Grande onde fui professor de mergulho científico até minha aposentadoria, até mesmo Santa Catarina sempre foi o máximo da água clara. Não podemos esquecer que em Rio Grande a água parece chocolate ano todo.
Agora imaginem pegar água de Caribe poucas milhas ao sul do Cabo de Santa Marta durante toda uma semana? O paraíso estava ali.
Dia 31/03/2012, atendendo incontáveis convites, planejei um mergulho com o Pavan em seu inflável.
Irmão de um empresário do mergulho no sul da Flórida, contador de incontáveis velejadas por todo o mundo, mergulhador veterano, tudo levava a crer que teríamos um mergulho noturno especial.
E foi.
Chegando no ponto de mergulho por volta de 18:30, aguardamos o sol baixar atrás da serra geral.
Quando apenas uma metade de um sol gigante estava a mostra entrei na água.
Só, pois o capitão, velejador e mergulhador veterano, resolveu que não iria.
Fiz o planejamento, mostrando as duas lanternas que ficariam a bordo.
Garanti que o ponto de entrada ficasse registrado no GPS, afirmando que não terminaria o mergulho a mais de 100m de distância daquele ponto, e que decorridos 40min estaria na superfície.
Ainda perguntei se ele gostaria que eu prendesse a âncora em local de fácil soltura para o caso de querer navegar.
Disse que não, que ficaria a rola, afinal não tinha uma única marola, uma única nuvem no céu e não havia uma brisa por leve que fosse.
Ao entrar na água ainda mostrei uma raia prego que quase na flor d’água nadava majestosa, acredito que com meus braços abertos não alcançaria sua envergadura.
Conseguiu ver a raia com os últimos raios de luz, do sol que já sumia por trás da montanha de 1400m que se estende ao longo do sul de SC e ficou abismado pela placidez do nado perfeito.
Nesta época o escuro vem rapidamente, e ao chegar ao fundo, aos 21m já estava totalmente escuro.
Lanterna com duas baterias 18650 de boa procedência, não aquelas dos sites chineses vendidas as dúzias e que de tão leves parecem ser apenas de isopor.
Sempre fiz questão de ter bom equipamento, e de ciumento não alugo ou empresto, e eu faço a manutenção. Meu equipamento só sai do paiol quando eu vou junto.
Até mesmo o ar para recarga só uso de meu compressor. Isto evita contaminação, corrosão e o pior intoxicação.
Mas eis que o mergulho foi uma maravilha.
Água limpa e quente. Grande variedade de organismos e o colorido do mergulho que só os mergulhadores noturnos estão acostumados.
O tempo voa. E logo eu iniciei a subida, já com saudade, afinal naquela semana mergulhei todos os dias e pensava voltar enquanto aquela malha de água estivesse por ali.
Mesmo dentro da curva de segurança de meu mergulho Nitrox, afinal eu era o único que preparava Nitrox em SC, fiz minha parada de 3 min nos 5 m, meu computador é exigente e passa o resto do dia me xingando se eu furo a descompressão de segurança.
Mas, eis que ao colocar a cabeça fora d’água tive aquela estranha sensação de solidão.
Instantaneamente me dei conta que fora abandonado pelo capitão do barco.
Parece que existe um sentido oculto e que nestes momentos soa o alerta.
Bom, plano B começa a ser gestado.
A distância até a praia mais próxima é de 6 km, não é longe, os nadadores fazem Leme a Copacabana em 55 min mais ou menos e a distância é praticamente a mesma. As vezes nadam em condições muito piores que o mar de almirante em que eu estava.
O problema, para mim, era uma coluna degenerada por anos de esforço repetitivo exagerado, postura e quem sabe até efeito de bolhas silenciosas de mais de 30 anos de mergulho.
Uma das seqüelas de uma cirurgia de coluna em 1993 era uma cãibra que me atormenta até dormindo, e que persiste até hoje.
As imagens do mergulho ainda estavam vivas e voltando constantemente a minha mente misturada com o brilho da luz na costa.
Comecei a planejar várias horas de nado solitário. Primeiro comecei a economizar a lanterna. Tinha duas, além de uma lâmpada estroboscópica amarrada na torneira do cilindro.
Esta lâmpada de pequena potência não era de grande valia, a não ser para pequenas distâncias, não para a distância que eu estava da costa.
Ainda lembrei outras oportunidades em que fui abandonado no mar.
Na Flórida, nos EUA fiquei sozinho após um mergulho de 40m quando do fundo eu conseguia visualizar os raios de um temporal na superfície.
Acontece que com o vento forte o capitão não conseguiu manter posição e teve que “correr” com o vento.
Estava em Pompano Beach, o barco era o catamarã de alumínio desenhado e pilotado pelo meu grande amigo (em memória) Capitão Jim Mims da Ocean Diving Inc, onde eu fazia especialização em mergulho técnico. Em 1995 não era difundido no Brasil e apenas uns poucos falavam em Nitrox, Trimix e equipamento de circuito fechado.
Neste dia os clientes da escola eram Tom Mount CEO da IANTD e seu grande grupo de candidatos a instrutor de instrutores técnicos e de caverna incluindo Gilberto M. Oliveira, pioneiro na exploração das cavernas de Bonito que era aluno e hóspede do Tom.
Eu acabei sozinho no fundo porque não conseguíamos desde a superfície ancorar no Rodeo 25, um dos inúmeros naufrágios programados para formar recifes artificiais naquela região. Então me ofereci, como já havia feito muitas vezes, para descer e prender a âncora. O João Silva que era gerente da Weg nos EUA desceria comigo para o seu curso avançado. Acabou que por ter esquecido o lastro na urgência da descida retornou para o barco. E Justo a tempo de entrar o temporal de verão tão comum na Flórida.
Mas voltando a Laje do Campo Bom, onde o Pavan havia me abandonado, resolvi começar a nadar em direção à costa.
Cedo percebi que não poderia forçar o ritmo, pois a câimbra era inclemente.
Não foi difícil encontrar um ritmo de 30 batidas de perna por 15 segundos de descanso.
Assim me permitia progredir sem perder tempo para me recuperar da câimbra.
Mas uma coluna estropiada ainda oferece mais problemas, e 12 Kg de chumbo na cintura não ajudam muito numa lombar comprometida. Afinal minha cirurgia foi na transição lombossacra e para complicar ainda tenho uma vértebra extra, conhecida como de transição. O que é vertebra de transição lombossacra? É uma vertebra mal formada com características intermediárias entre lombar e sacral, chamada de VT. Pode acarretar problemas mecânicos da coluna, propiciando hérnias de disco e espondilolistese. Afinal desgraça pouca é bobagem.
Solução, descartar o lastro. Mas não o cinto, afinal me acompanha desde janeiro de 1981 em Bruxelas, quando passei um mês por lá, e trouxe além do cinto uma faca da Scubapro conhecida como “The Knife”. Para os curiosos e adoradores da cutelaria não vai ser difícil encontrá-la com o tio Google.
Descartado o lastro sigo nadando, a maior parte do tempo de barriga para cima contemplando as estrelas.
Alguém poderia suspeitar que eu estivesse navegando por elas. Mas não quero decepcionar ninguém e prefiro dizer que apenas admirava o espetáculo da noite sem luar, sem nuvens e plena de estrelas.
Arrasto, todos hoje comentam sobre “trim” tem até quem dê aula sobre o tema.
Na verdade é fácil perceber a resistência do ar, imagine a resistência que a água oferece para quem já está debilitado e deixa de adotar uma postura hidrodinâmica e apresenta grande volume ao deslocamento.
Reduzir a resistência significa desistir de parte do equipamento. Então está decidido, fica o cilindro. Retirei o cilindro do colete, esvaziei e fechado larguei o mesmo flutuando. Espero que se alguém achou e queira devolver posso mostrar o número de série nas minhas planilhas de equipamentos.
Sobre perda de equipamento é assim mesmo. Um dia se perde outro dia se acha.
Já tive oportunidade de achar uma arma de caça submarina Riffe e encontrei o dono para quem pude devolver.
Também encontrei uma câmera fotográfica com caixa estanque e flash que pude devolver. Valeu-me um churrasco no Tropicana, rodízio famoso em Pompano Beach com show de mulatas e capoeira.
O melhor, no entanto, foi um regulador Sherwood Maximus que achei na Florida nos 20m de profundidade num recife, totalmente novo e completo inclusive com computador e a traqueia de um colete. Este eu uso até hoje com exceção do computador que já foi mudado inúmeras vezes.
Mas a faca, aquela de 1981 em Bruxelas perdi no Parcel da Pombinha na Ilha de Galés. Água muito suja aos 27m só me dei conta que rompeu a trava no final do mergulho, estava com Almir (em memória, incrivelmente morreu jovem resultado de uma queda de bicicleta) e minha irmã Denise.
Enquanto nadava em direção à costa, com o colete desinflado e com o regulador bem justo ao redor do corpo, meio socado por dentro do colete, sempre no escuro, às vezes olhava para o fundo, afinal meus amigos já viram tubarões mangona e mako naquela área.
Ainda que não tenha muito medo de tubarões por todos os encontros prévios, e sabedor de que eles não consomem carne de segunda, imaginava que talvez a luminescência da noctiluca pudesse revela-los antes que algum que não fosse muito exigente ou então que fosse muito curioso resolvesse fazer um tira-gosto.
Aproximadamente a cada 20 ou 30min parava para descansar e acendia a lanterna em direção à costa. Imaginava que o Pavan, se não tivesse afundado, coisa difícil com um inflável, poderia estar na praia, ainda que por qual razão não conseguisse entender, e estivesse buscando sinal de minha presença para um providenciar um resgate.
Voltando para Pompano Beach e o mergulho no Rodeo 25, foi mágico. O naufrágio inteirinho só para mim e cardumes enormes de barracudas e xaréus que pareciam buscar refúgio dos raios do céu no naufrágio.
Ficavam todos afilados com a corrente a meia nau, como se ali fosse mesmo uma proteção contra os raios que eu podia noticiar desde o fundo.
Lógico que ninguém desceu, o temporal de verão foi forte e veio acompanhado de muito vento.
Com o tempo esgotando, e o alerta do computador avisando que era hora de subir iniciei a subida.
Não sem antes reposicionar a âncora da bóia num ponto de fácil soltura.
Pendurado no cabo, com corrente bastante forte, podia ver o tempo muito escuro e muitos raios.
Após meus três minutos de descompressão de segurança, ao chegar na superfície tudo que eu via era espuma das ondas tocadas pelo vento.
Voltei aos 5m imaginando o que iria fazer.
Mas, após alguns minutos o céu começou a abrir e tudo ficou bem mais claro novamente.
Subi e a primeira embarcação que vi, ainda com visibilidade limitada, foi um inflável do Tow Boat, barcos que oferecem socorro no mar.
Com a lanterna fiz um sinal circular que trouxe sua atenção.
Bastante rude me perguntou o que eu estava fazendo ali, como se tivesse sido minha opção e ele fosse uma espécie de fiscal ou dono do mar.
Respondi que meu barco deveria estar me esperando e que não tinha idéia do que havia acontecido.
Perguntou-me o que gostaria que ele fizesse e então pedi que chamasse o Reef Cat pelo rádio. A resposta foi imediata e o Jim informou que havia “corrido” com o vento até Boca Raton e estava já retornando para me recuperar.
Acabou que o Jim me recuperou, o pessoal todo mergulhou no Rodeo 25, tivemos uma nova tempestade, só que desta vez pudemos manter posição.
Mas, nadando desde pouco depois das 19 horas comecei a pensar em minhas aulas de sobrevivência no mar da FURG.
Eram duas horas de teoria e uma visita a Tecninave, tradicional estação de manutenção de balsas de salvamento onde podíamos ver o disparo para inflar uma balsa ou já aberta com todos os itens obrigatórios. Discutíamos postos de abandono e abordagem, liderança e distribuição das tarefas, manobra para desvirar a balsa, acessórios, coleta d’água, itens para uma sobrevivência mínima, sinalização, medicamentos e artefatos de pesca.
Podemos elencar de forma bastante genérica quatro elementos contrários a sobrevivência em qualquer ambiente.
O primeiro destes fatores e o primeiro a se manifestar são os psicológicos, seja medo, solidão, tédio, saudade, angustia, raiva….
Por incrível que possa parecer temos incontáveis casos de mortes em situações de sobrevivência quando ainda existem alimentos, água e abrigo exatamente pelo desespero que leva as pessoas ao suicídio.
Em segundo lugar podemos destacar a falta de ração líquida. E isto era algo que me afligia enquanto nadava para a costa, o momento em que começaria a sentir sede.
Falta de ração sólida e exposições ao tempo completam os fatores contrários à sobrevivência.
E eu continuava nadando no meu ritmo lento e constante.
A cada período de pausa acendia a lanterna.
Mal sabendo que meus breves lampejos estavam sendo observados por alguém pouco acostumada ao oceano.
Acontece que uma senhora de Chapecó, no extremo oeste catarinense visitava a filha o genro no Balneario de Arroio Corrente em Jaguaruna e sentada na sala da casa, um ponto bem mais alto que a beira da praia, vislumbrava os poucos minutos de lampejo de minha lanterna.
Começou a alertar o genro, Plínio, surfista e piloto de moto aquática de ondas gigantes.
O Plínio cada vez que era alertado largava o churrasco que preparava e se postava no ponto mais alto para observar a luz misteriosa que neste momento já não estava mais lá.
Ainda duvidava da sogra, argumentando que sequer havia um barco à vista no horizonte.
Meu amigo Rui, marinheiro amador experimentado, a quem eu havia convidado para ir junto no barco para o mergulho e recusara pois estava pronto para jantar, havia buscado os carros estacionados na praia. Não encontrando ninguém seguiu até achar o Pavan com o inflável varado na praia.
Ao perguntar por mim o Pavan disse que havia tido um “probleminha” e que eu havia ficado para trás.
O Rui queria enforcar o Pavan, ainda mais quando este justificou que havia acendido a luz indicativa do óleo e por esta razão ele havia retornado para a costa. É quase desnecessário dizer que ao acender a luz indicativa do óleo de um carro a primeira ação é parar e desligar o carro.
Acontece que o Rui logo conseguiu o apoio do Plínio para iniciar uma busca com sua moto aquática.
Todos sabem como a busca no mar e trabalhosa e infrutífera, a falta de referencias visíveis, e especialmente a noite não alimentavam muitas esperanças.
Mas, o Plínio que estava acostumado e encarava ondas gigantes, das quais não quero nem estar perto, não era exatamente fã de navegação noturna. Então, ele que já fizera algumas voltas sempre próximas à praia, retornou para a terra e voltou à busca na companhia de seu amigo Gaucho, e ainda levaram uma lanterna. Quem está acostumado a navegação noturna sabe que o melhor é navegar no escuro, acostumando a vista as pequenas variações e brilho na mar.
Acontece que o silencio da noite de calmaria me ajudou a escutar ao longe o barulho inconfundível do motor da moto aquática. E no escuro, um palito de fósforo pode se avistar de longe.
Pois que numa de minhas pausas para descanso escutei o motor ao longe, então acendi a lanterna mantendo-a o mais alto possível e voltada na sua direção. Foi instantâneo o aumento do som do motor mostrando que haviam me avistado e se dirigiam para mim.
Não demorou muito para chegarem bem próximos, mas ainda mantendo distância, e perguntaram se eu estava bem, ao que respondi que estava muito melhor agora que eles estavam ali.
Com eles se aproximando e com as instruções recebidas fiz minha tentativa de subir pela lateral da moto aquática que resultou num fracasso total caindo todos na água.
Se já viram um gato fugindo do banho foi a cena destes dois intrépidos salvadores subindo de volta na moto. Resultou numa risada que acabou qualquer resquício da situação complicada da qual eu estava saindo.
Em terra, já quase meia noite estava na beira da praia polícia militar, polícia civil, bombeiros e certa audiência de curiosos.
Alias o Plínio é empresário e era bombeiro voluntário desempenhando importante função na sua comunidade.
Agradeci imensamente, fiz questão de bater uma foto com meus resgatistas que guardo com carinho.
Gaucho e Plinio
Um incidente, mas que poderia ter um desfecho trágico por varias razões, felizmente anos de experiência e conhecimento das técnicas de sobrevivência foi fundamental para a calma e disto restou a historia.
Mas não foi só, escrevi uma longa carta ao comando dos bombeiros de Jaguaruna, que em reconhecimento ao desprendimento do Plínio de deixar sua família e se aventurar no mar para resgatar um desconhecido lhe conferiu uma medalha de bravura.
Já fiquei no mar aguardando o barco por algumas vezes mais, ma vez quase resultando em divorcio do capitão e em outra delas fui recolhido junto com meu companheiro de mergulho Kevin pela Guarda Costeira americana.
Mas isto é outra historia.
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